Especial Lúpulo: O amargor da Cerveja

Voltamos o nosso Especial de Lúpulos para falar sobre um dos principais motivos que utilizamos o lúpulo na cerveja: para conferir amargor.  Quando vamos montar nossas receitas e escolher os ingredientes, sempre ficamos de olho na porcentagem de alfa ácido ou a.a.%. Você sabe porque essa substância é importante e como ela confere o amargor da cerveja? Nesse post vamos aprofundar mais no assunto e falar sobre substâncias amargas, isomerização, tecnologia e alguns defeitos relacionados ao lúpulo.

Um pouco da história

O lúpulo é uma planta trepadeira produzida em regiões frias. A origem do se nome vem do latim, Humus Lupulus – pequeno lobo – e refere-se ao seu comportamento, que na natureza escala em outras plantas, sufocando-as. Segundo estudos genéticos, o lúpulo provavelmente surgiu há 5 milhões de anos atrás, na Mongólia. Há  1 milhão de anos, surgiu o lúpulo europeu, diferente do original que surgiu na Ásia. Entre 1150-1160, a monja beneditina Hildegarda de Bingen descreveu em suas anotações a utilização de lúpulo durante a fervura, no processo de fabricação de cerveja. É de 1348 o primeiro registro que confirma que haviam plantações de lúpulo onde hoje é a  República Tcheca.

Provavelmente a utilização de lúpulo na cerveja se deu principalmente para conservar a bebida por mais tempo, já que a planta tem propriedades bactericidas. Sabe-se que testavam inúmeras plantas, flores, especiarias com esse objetivo e algumas delas davam mais resultado do que outras. Foi em 1516 que o lúpulo se consagrou como um dos principais ingredientes da cerveja, com a proclamação da “Lei da Pureza Alemã”.

 

plantação de lúpulo
Colheita de Lúpulo Edinburgh, 1862. Imagem retirada do PDF For The Love Of Hops – Stan Hierpnymus

Substâncias Amargas

Para a produção de cerveja, utilizamos as flores da planta fêmea. O lúpulo irá conferir para a cerveja: aroma, sabor e amargor. O amargor é proveniente das resinas amargas, que compões de 10 a 25% da flor (enquanto os óleos essenciais, responsáveis pelo aroma e sabor, representa apenas 0,4 a 2%).Além do amargor, as substâncias amargas também possuem ação bacteriostática e contribuem positivamente na qualidade da espuma da cerveja, por ser uma substância tensoativa.

As principais substâncias amargas são a Humulona e Cohumulona, que são Alfa-ácidos e a Lupulona, que é um Beta-Ácido. O alfa-ácido é 9 vezes mais amargo que o beta ácido e o beta-ácido não isomeriza e nem dilui em pH menor que 5,6 (tabela 01). Por causa disso, sempre consideramos apenas o alfa-ácido em nossos cálculos de amargor. Para saber mais sobre o pH ideal de mosturação, não deixe de ler nosso post Água Cervejeira, desmistificando este “bixo papão” – Parte I

substâncias amargas
Tabela 01: Substâncias Amargas x pH. Fonte: Barth Haas – Hop Academy 2014

 

Isomerização

O alfa-ácido encontrado no lúpulo em sua forma natural não confere amargor na cerveja, uma vez que ele é insolúvel em água. Para solubiliza-lo em nosso mosto, precisamos transformar o alfa-ácido em seu isômero, o Iso-alfa-ácido. Os isômeros são moléculas com fórmulas químicas idênticas mas posições de seus grupos funcionais, ligações duplas ou ramificações diferentes. A isomerização do alfa-ácido ocorre com aplicação de altas temperaturas (próximas de 100°C), por isso é importante ferver o mosto por pelo menos 60 minutos, para isomerizar o máximo de moléculas possíveis. Mesmo assim, fervendo por 1 hora, aproveitamos aproximadamente apenas de 50-60% do alfa ácido total.

formula molecular
Representação da reação de isomerização da humulona em cis/trans-iso-humulonas (mais amargas e mais hidrossolúveis) durante o processo de fervura do mosto em temperatura ≥ 100 °C e por um tempo de 45 a 60 minutos Fonte: Química do Lúpulo, 2019.

O rendimento da isomerização depende dos seguintes fatores:

  • Variedade do lúpulo;
  • Concentração do mosto;
  • Tempo da fervura: quanto mais tempo fervendo, mais iso-alfa-ácido teremos;
  • Temperatura da fervura: regiões com altitude elevada e não chegam à 100°C tem baixo rendimento. A solução é utilizar o TetraHop (Tetrahidro-iso-alfa-ácido), uma solução estável obtida a partir do alfa-ácido (nesse caso, não é adicionado o lúpulo de amargor, só o Tetrahop).
  • Forma do lúpulo (pellets isomeriza mais do que em flor).
  • Do pH: o pH ideal de fervura é entre 5,1 – 5,3. Porém, esse pH, como mostra a tabela 01, reduz a isomerização do alfa ácido. Em contra partida, estudos sensoriais mostram que a Qualidade de Amargor é melhor quando fazemos a fervura nesse pH. Quando trabalhamos nessa faixa de pH, o ideal é considerar um aumento de 10% a mais de lúpulo para atingir o IBU calculado.

 

Tecnologia

Durante o último século o desenvolvimento de lúpulo foi focado em um objetivo: como reduzir a quantidade de lúpulo adicionado na cerveja aumentando a concentração de alfa ácidos? A ciência avançou muito nesse campo, desenvolvendo cultivares melhoradas, com mais alfa ácido, reduzindo custos na produção de cerveja. Somente nas últimas décadas que iniciou pesquisas no campo de melhorar os óleos essenciais e desenvolver mais lúpulos de aroma.

Uma novidade lançada em 2020 é o Lúpulo Pahto, um lúpulo com super alfa-ácido desenvolvido pela Hop Breeding Company. O Lúpulo Pahto, conhecido também por HBC 682, apresenta 17% de alfa ácido na safra de 2019, mas pode chegar a 20%. Confere amargor suave para a cerveja e, se utilizado somente no começo da fervura, o Pahto apresentará um sabor e aroma neutro. Caso seja utilizado para aroma, irá conferir notas herbais, terrosas e florais.

Lupulo Pahto
Novidade de 2020: o lúpulo Pahto tem um super alfa ácido.

Defeitos

E qual é a importância de se utilizarmos lúpulos com alta concentração de alfa-ácido em nossas receitas? Muitos cervejeiros e cervejeiras iniciantes tem essa dúvida, afinal, posso usar lúpulo de aroma para conferir amargor e de amargor para conferir aroma? Na verdade, quando fazemos cerveja em casa não existe uma regra, e agradar o nosso paladar é o mais importante. Dito isso, é legal sabermos algumas informações quando vamos escolher os ingredientes.

Lúpulos que tem concentração alta de alfa-ácido são pobres em óleos essenciais e vice-e-versa. Utilizar um lúpulo de aroma, rico em óleos essenciais e pouco alfa-ácido, para conferir amargor na cerveja não é muito interessante pois você precisará de uma quantidade maior de lúpulo, gastará mais dinheiro, para conseguir o mesmo resultado e perder todos os óleos essenciais durante a fervura.

Outro motivo importante para optar por um lúpulo com alto teor de alfa-ácido é para evitarmos a turbidez na cerveja. Além de resinas amargas e óleos essenciais, a flor de lúpulo contém outras substâncias, uma delas são os Taninos (Polifenóis). Os taninos se ligam às moléculas de proteínas de tamanho médio-grande durante a fervura do mosto e formam o complexo PT, deixando a cerveja turva. Sabe aquela cerveja que estava linda no fermentador, super cristalina, você envasou e na hora de abrir, expectativa lá em cima, a cerveja estava toda turva? É graças a esse complexo de proteína e taninos.

Para evitar a turbidez devemos fazer duas coisas: 1) Diminuir as moléculas de proteínas. Os maltes não tem moléculas grandes, isso só ocorre quando utilizamos algum cereal não maltado – nesse caso, sempre faça parada proteica desses cereais (flocas de aveia, flocos de arroz, trigo não maltado). 2) Reduzir a matéria vegetal  na fervura, evitando que ocorra a formação do complexo. Para isso, utilize lúpulos com alto teor de alfa-ácido e opte por adicionar os lúpulos de aroma após a fervura (0 min, whirlpool, dry-hopping). Se as proteínas não se ligam ao tanino durante a fervura, elas irão decantar e ficar no trub.

Outro defeito relacionado ao lúpulo é o famoso LightStruck, Saiba tudo sobre esse off-flavor e o que fazer para evita-lo no post: Especial de lúpulo – Lightstruck

E ai, o que acharam desse conteúdo? Vocês imaginavam que por trás do amargor da cerveja existiam tantos detalhes? E como é importante entender os ingredientes antes de montar sua receita. Falando nisso, se quiser aprofundar mais no assunto e aprender a montar suas próprias receitas, lançamos um workshop em parceira com o Bernardo Couto, Sócio Fundador da Cervejaria Duas Cabeças o Workshop Online de Elaboração de Receitas de Cervejas

Referências

Apostila “Curso Avançado de tecnologia cervejeira” – Instituto da Cerveja Brasil, 2017

Hieronymus, S., For The Love Of Hops, 2019

DURELLO, R., SILVA, BOGUZS, S. Química dos Lúpulos, 2019. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-40422019004800900

 

 

Natalia Poli Bichara Autor

Engenheira de Alimentos formada pela USP e técnica cervejeira pelo ICB, desde a época da faculdade me interessei pelo processo de fabricação de cerveja. Entrei como estagiária na Lamas em 2013 e desde então sou apaixonada pelo mundo das cervejas artesanais. Adoro fazer testes com receitas inusitadas, beber cerveja e falar sobre cerveja, Saúde!

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