O que é pH e sua importância na fabricação de cerveja artesanal?

Um dos parâmetros mais importantes no processo de fabricação de cerveja é o pH. Saber qual é o pH e controla-lo é ignorado por muitos cervejeiros (e cervejarias). E neste artigo faremos uma introdução do que é o pH e qual sua importância para se fazer uma boa cerveja.

Hoje é muito comum encontrar cervejeiros preocupados em corrigir os sais da água de mostura para obter uma cerveja melhor. Diria que entre os cervejeiros, que já saíram das primeiras brassagens, esta seria a nova “onda” de melhoria. Mas será?

Corrigir os sais da água é importante sim. Mas a correta correção (e é aqui o ponto fundamental da questão) exige algo que a maioria dos cervejeiros não tem: um laudo atualizado da sua água. Sem um laudo (ou análise) da sua água, tudo o que você fizer será chute (e geralmente isso não vai melhorar sua cerveja, só vai te dar mais trabalho e tornar sua cerveja mais cara). “Ah, mas eu uso água mineral e no rótulo tem os sais”. Não serve. Geralmente estes laudos de rótulo são feitos de tempos em tempos (e põe tempo nisso) e não correspondem a realidade. O mesmo vale para os laudos obtidos direto com a concessionária de água da sua região. Neste caso o laudo é mais confiável, mas é feito em um ponto que não é de onde você está usando a água.

Em geral nossa água é boa. É potável. Livre de contaminantes. E mais…. boa parte dos minerais que vamos precisar nas nossas mosturas vão ser supridas pelo malte.

O que quero dizer até aqui é: Ignorem a correção de sais da água se você não souber exatamente o que vai querer com essa correção e se você não tiver um laudo recente da sua água. Acreditem, você deixar de fazer isso não vai estragar sua cerveja. É muito melhor não fazer do que fazer errado.

Mas tem algo relacionado a água e a mostura que vai te causar muito mais problemas se você ignorar do que que corrigir os sais da sua água: é o pH. E pasmem, tem cervejarias que ignoram solenemente essas duas letrinhas. Mas adoram corrigir os sais da água sem laudo da água.

O ponto de reflexão que quero passar para vocês é: cuidem do pH de sua mostura. Seu bolso e sua cerveja vão adorar.

Mas afinal de contas…. o que é pH? E por que ele é tão importante assim?

O pH do mostro afeta diretamente a atividade enzimática de conversão de amido em açúcar (na mosturação). Afeta também a sensação de amargor. Afeta o andar da fermentação, cor, transparência e até mesmo o sabor da cerveja. Ou seja, o pH é um parâmetro importantíssimo a ser controlado em sua cerveja. Entender o pH vai te ajudar a fazer cervejas melhores e acredite…mais baratas.

O pH é um dos parâmetros mais importantes para ser monitorado e o mais simples de ser ajustado durante a fabricação da cerveja. A sigla pH significa Potencial Hidrogeniônico e de forma simples significa um índice que mede a acidez, neutralidade ou alcalinidade de um meio. A letra “p” é o logaritmo negativo de “H” que é concentração de íons de hidrogênio na solução(quimicamente falando: H+). Matematicamente falando então pH é igual a  -log(H+).  A escala pH varia, tipicamente, entre 0 a 14. Quanto mais próximo de 0 mais ácido é o meio e quanto mais próximo de 14 mais alcalino é o meio. Valores em torno de 7 indicam que o meio é neutro.

Alguns exemplos de pH de meios conhecidos:

  • Coca-Cola: pH 2,5
  • Água Pura: pH 7,0
  • Suco de Limão: pH entre 2,2 e 2,4
  • Leite de Magnésia: pH 10,5
  • Soda Caustica: pH 14,0
  • Ácido nítrico: pH 1,0
  • Cerveja (em média): pH 4,3
  • Cervejas estilo Catharina Sours: pH entre 3,2 e 3,5
  • Mosto Cervejeiro: pH entre 5,1 e 5,5

Porém algo importante para consideramos é que o pH esta em uma escala logarítmica (lembrem-se pH=-log(H+). E esta escala é uma escala bem diferente. Este “log” nessa equação é a mesma coisa que reescrevermos essa equação como:   10pH=H+. Olhem que interessante, se uma solução tem pH 5, a quantidade de H+ na solução será de H+=105=100.000 . E se tivermos uma solução com pH 6, a quantidade de H+ na solução será de H+=106=1.000.000. Notem que a variação de pH de 5 para 6 (ou seja, o pH subir 1) aumenta em 10 vezes o pH. Este é o cuidado que temos de ter em escalas logarítmicas. Qualquer variação é muito grande. Por isso uma variação de pH de 5,3 para 5,4 parece pouco, mas não é.

Ok, mas o que eu meu mosto tem haver com isso tudo?

A importância do pH na mostura

Agora que vimos os conceitos básicos do que é o pH vamos entender sua importância na mostura. A chave para o controle total do pH no processo de fabricação da cerveja está em ajustar o pH da mostura. Esta etapa é a de maior influência em todo o processo até a cerveja pronta. Muito provavelmente o correto ajuste de pH nesta fase eliminará ou reduzirá muito ajustes posteriores.

Um fato super conhecido dos cervejeiros é que as enzimas atuantes na mostura só “funcionam” em temperaturas bem definidas. Por exemplo, sabemos que a atuação das alfa-amilases ocorre entre 64ºC e 72ºC. Mas um fato bem ignorado por muitos cervejeiros é que estas mesmas enzimas precisam estar em um pH correto para funcionarem com todo eficiência possível. A conversão enzimática (amidos em açúcares, por exemplo) só acontece de forma eficiente se a temperatura e o pH estiverem corretas.

A figura 1 mostra as temperaturas ótimas e os pH’s ótimos (para máxima conversão) para as alfa e beta amilases. Para alfa-amilase o pH ótimo esta por volta de 5.5 e para a beta-amilase em torno de 5.3. De modo geral notamos que a janela ideal de brassagem estaria em torno de pH 5.4 para uma temperatura em torno de 68ºC. Se o pH não estiver nessa faixa, o que acontecerá? A conversão enzimática ocorrerá de forma bem mais lenta o que demandaria um tempo maior de brassagem (mais custo) ou até a sensação de falta de eficiência do malte fazendo com que você coloque mais malte para obter a densidade desejada (mais custo).

Figura 1 – Curvas de conversão enzimática por temperatura e pH.

Uma grande vantagem que temos para a correção de pH na mostura é o malte. Ao arriar o malte na água para a brassagem ele vai abaixar o pH da solução (água + malte). E muitas vezes o pH ficará na região ideal mostrada na figura 1. Este efeito é devido aos fosfatos presentes no malte que atuam criando um efeito conhecido como  “Tampão”, que deixa o pH da solução água+malte em torno de 5.6 mesmo que o pH da água esteja acima deste valor (e as vezes bem acima). Arriando o malte na água (sem tratamento de pH) você economizará soluções para acidificar a água. Pois o malte já fará boa parte do serviço por você. Outro ponto interessante sobre maltes é que quanto mais escuro o malte mais ácido ficará seu mosto.

A água de lavagem dos grãos também deve ter um pH controlado (entre 5.5 e 6).Lavar os grãos com uma água com pH maior de 6 arrastará taninos, silicatos e outros componentes indesejados dos grãos que resultará em adstringência e turbidez na cerveja.

Já na fervura manter o pH em entre 5.1 e 5.3 ajuda na isomerização dos lúpulos e de seus óleos essenciais além de ajudar e muito na coagulação proteica tornando o trub muito mais compacto além de tornar o mosto mais limpo. Outro fator é a aspereza do amargor onde há relatos que nesta faixa de pH o amargor fica mais limpo (há também taninos no lúpulo que podem ser extraídos em pH mais elevado). Ainda na fervura a cor do mosto também é influenciada pelo pH. Durante a fervura do mosto é natural a cor do mosto aumentar devido as reações de Maillard (reações entre aminoácidos e açúcares). Mas reações de Maillard não são eficazes em pH baixo. Portanto em cervejas claras o controle de pH na fervura é fundamental.

Durante a fermentação o pH continua caindo devido a várias razões. As células de levedura durante a fermentação excretam ácidos orgânicos (incluindo ácido lático) fazendo com que o pH diminua. Dependendo da cepa essa produção de ácido lático varia. Tipicamente o valor de pH varia entre 4.2 e 4.6. Em pH menores de 4.4 a cerveja clarifica mais rápido, a reabsorção de diacetil é acelerada e a estabilidade biológica é aumentada (bactérias não gostam de meios ácidos). Porém raramente cervejeiros ajustam pH na fermentação.

 

Como medir o pH da cerveja artesanal

A medição de pH pode ser feita através de fitas teste de pH ou de pHmetros. As fitas de teste são menos precisas, mas já ajudam a te dar um norte sobre como esta o seu pH, além disso elas são baratas e fáceis de se achar. Os pHmetros existem em centenas de modelos desde os portáteis e mais simples (custamos algo em torno de R$ 100,00) até os mais precisos e de bancadas (custando alguns milhares de reais).

A medida por fita é bem simples, basta mergulhar a fita na água ou mosto (sempre em temperatura abaixo de 40ºC) e verificar a cor das marcações da fita com um padrão (que fica na caixa da fita). Já com o pHmetro a medida é direta, basta colocar a sonda diretamente sobre o líquido (sempre verifique a temperatura máxima que o aparelho suporta) que o aparelho mostrará o valor do pH diretamente em seu visor.

Figura 2 – pHmetro portátil utilizado para medir pH da água, do mosto e da cerveja

 

Como corrigir?

Fazer correções com sais é uma alternativa para correção de pH. Doses de Gipsium (carbonato de cálcio) ou cloreto de cálcio diminuem o pH. Mas como disse no início do artigo, vamos esquecer as correções de sais por hora, pois sem saber a correta composição da sua água podemos nos atrapalhar.

Para diminuir o pH (ou seja, tornar a solução mais ácida) tipicamente é usado ácido orgânicos como ácido lático ou ácido fosfórico. O uso destes ácidos não contribui com qualquer aroma ou sabor indesejado na cerveja. Se sua água for dura (água com muito cálcio e magnésio) você gastará mais ácido lático para acidificar a água do que se usar ácido fosfórico (isso tem haver com efeito tampão, que não entrarei em detalhes aqui).

Um exemplo: em nossa cervejaria (a Cervejaria Cogumelo) nossa água é bem dura. Em uma tina com 1500 litros de água com pH 7.8 gastamos quase 600 ml de ácido lático para deixá-la com pH de 5.5. Já se usarmos ácido fosfórico usamos pouco mais de 250ml para obter o mesmo resultado.

Raramente vamos precisar subir o pH, mas caso seja necessário, pode-se usar pequenas doses de hidróxido de sódio.

 

Resumindo então….

O controle do pH é fundamental para termos uma cerveja bacana e sobretudo para otimizarmos o processo (assim economizando tempo e dinheiro). Este controle, como foi visto, é muito fácil e barato e não requer profundos conhecimentos sobre a água ou composição dela ou do mosto. A ideia deste artigo era mostrar a simplicidade por trás do controle do pH, pois esta medida é ignorada por muitos cervejeiros. No meu ponto de vista é algo muito mais importante para o nosso dia-a-dia cervejeiro do que tratar água indiscriminadamente.

 

Então minha dica é: Controle o pH da sua brasagem, sempre.

E para resumir todo o artigo a figura 3 ilustra bem o que eu disse aqui.

Figura 3 – Resumo geral das faixas de pH durante o processo de fabricação do pH

E por fim, se quiser aprender a calibrar o phmetro, confira esse post em nosso blog https://www.lamasbrewshop.com.br/blog/2018/08/aprenda-a-calibrar-phmetro.html

Boas Cervejas

David

 

Bibliografia:

1 – “Technology Brewing and Malting”, W. Kunze (4Th Edition)

2 – https://www.lamasbrewshop.com.br/blog/2017/09/agua-cervejeira-desmistificando-este-bixo-papao-parte-i.html

3 – https://lamasbrewshop.com.br/blog/2017/10/agua-cervejeira-desmistificando-este-bixo-papao-parte-ii.html

 

David - Lamas Autor

David Figueira, doutor em Física pela UNICAMP e fundador da Lamas Brew Shop e da Cervejaria Cogumelo.

Comentários

    marcos pedroso

    (15 de junho de 2022 - 07:39)

    Bem legal sua explicação e orientações! Minha água após colocar o malte, atinge um pH de 5,0. Para subir o valor, coloco CaCo3 numa proporção 0,8g/litro, é esse o melhor caminho?
    Grato.
    MP

      Fernanda Puccinelli

      (20 de junho de 2022 - 16:17)

      Olá Marcos. O carbonato de cálcio é uma ótima opção para torná-la mais alcalina (subir o pH).

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